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Primeiro poema à maioridade

(17/03/2014)

Admirável mundo novo, sensacional:
Eu estou aprendendo a ficar velho, no Brasil.
(Não como rejeito ou excluído social
Mas como maravilhoso vinho-verde de barril)
Sei meu endereço inteiro; escrevo poesias
Reconheço parentes, companheiros e crias
Até freqüento as Missas (de Sétimos Dias)
Sei quando a minha netinha da escolinha atrasa E ainda hoje eu me peguei
Cantando “As Flores do Jardim de Nossa Casa”
De Roberto Carlos – o Rei.

Nunca fui tão tranqüilo, sábio, sereno, gente
Como ao me sentir velho e muito consciente
Até um Curso de Terceira Idade eu comecei
Escrevi poema de amor aos meus ancestrais
Aos que vieram de muito antes de meus pais
E até posei de cara limpa, cara lavada De amante – dessa minha Pátria Amada
Ser velho é ser atual; ter paz e saúde
Eu tenho bagagem – eu fiz o que pude
Equilibrei a energia de uma juventude
À pureza da primeira infância, os primeiros ais
(Ah! as acontecências que a Saudade nos traz)
E assim, feliz, dei nisto que a vida hoje me faz:
Eu mesmo – e com muitissíma fé!
(Como é bom ser o que a gente é
Nada mais.)
Não tenho medo de:
Vaidade – fascinação
Escuro (ou Solidão)
Comunista, Injeção
Obesidade – pensão
-Ternura – Com uma nova amiga
Eu sou um amante à moda antiga
Mando flores, danço até bolero.
(Ser Velho é ser vero!)
Por quê, Deus do céu, não fui velho já nos meus quinze anos?
Ou com quarenta e tanto, na flor da juventude ainda não extinta?
(Se eu soubesse que velhice era tão bela assim, faria planos
E eu o seria feliz, ainda nos idos dos meus vinte anos, ou trinta…)
Não ter compromisso – ou ter alegria, diversão
Não respeitar sinais de pânico – ou decantação
Vaiar a depressão e não conferir bilhete de regressão
(E ainda chamar os brotos de brotos. Ai meu coração!)
Na outra vida – Vida Eterna muito além dessa ciranda
Quero ouvir Taiguara, Francisco Buarque de Holanda
Ler Sócrates, Neruda, Drummond – e tocar numa banda
Chamar a querida esposa-musa-vítima de “meu talismã”
E fazer sucesso nos rituais da família, toda santa manhã.
Não acreditar em inverdades – estereótipos, ou matutas lendas sem valor
Deus é coisa séria, caridade e orações aos simples – eis o eixo do Amor
Não precisar ser bobo, mentir, votar em político corrupto, falso ou ladrão
E nem precisar deixar de ser eu mesmo para agradar a parente ou patrão.
(Ser velho é realmente o maior barato. E ainda assim a maior “curtição”.)
(Os incautos adolescentes às vezes não me respeitam)

Enquanto ser velho é só pagar candidamente em dia
A existência – como soma de maravilhosa mais valia
E a gostosa prestação de uma pura integridade de Ser)
Ser criança para mim hoje já não é assim tão divertido
Ser adolescente pode ser trivial, ou de verbo rude, sem estudo
Ser jovem é ter muita grife só que com pouco conteúdo
SER VELHO É GANHAR A HONRA DE TER SIDO
Quem nunca chegar a ser um velho como deveria
E morrer muito antes por ter se exaurido
Talvez terá sido medíocre e vai descobrir um dia
Que fingiu um curtume, não terá existido.
Eu era um menino com faniquito que via anjos num jardim caboclo
Eu era um guri que amava Itararé, Pixinguinha e Tonico & Tinoco
Cheguei a ser triste e amargo – Como choro e ranger de dentro
Mas ser velho é o melhor exercício como se um sólido templo
E viver completo é mais verdadeiro – E um grande documento.
O Brasil não respeita os seus velhos
(Mas o Brasil não respeita o Brasil)
As crianças são idiotizadas desde o próprio berço familiar
(Os velhos permanecem íntegros, de vivência e de sonhar)
Os jovens dopam-se e ostentam rótulos em vão
(Mas os lutadores vencedores a terra herdarão)
Afinal, qual é o defeito de ser velho da Terceira Feliz Idade, então?
Dormir de pijama? Escovar os sonhos sábios de uma errança?
Comer espinafre? Torcer pro Timão? Ter céus na esperança?
Ter siricotico ao ouvir Castro Alves ou samba verdadeiro com Jamelão?
Ser velho, na verdade, é ser de novo, criança outra vez.
Com mais competência, lisura, calma e forja de lucidez
Deus dá aos velhos o sentido real de vida e da decência
Moisés, Miguelângelo, Picasso, Ziraldo – tudo que se fez
Aprenderam a ternura do amor dessa linda acontecência
Sem perder o ritmo e um dínamo da mais pura existência.
A hérnia? – E o equilíbrio racional?
A careca? – E a sapiência moral?
A aposentadoria? – E a nova releitura de Platão?
Ser velho é olhar para trás e dizer com emoção:
Vim, vi, Venci e Amei
E quem quiser que tenha competência, tesão
Para um dia chegar nessa terceira infância até onde eu cheguei!

Silas Correa Leite – poesilas@terra.com.br. Membro da UBE-União Brasileira de Escritores.
Trabalho que consta no Livro “O amor é o melhor remédio” (Inédito) – Poema lido na
Universidade de Sorocaba, por ocasião de encerramento de um Curso de Extensão para a Maioridade – Autor de Porta-Lapsos, Poemas.

Curriculo Eu de Mim Mesmo, do Poeta e Cronista Cervejólogo

Não nasci no guarujá. não tenho nome bonito ou importante. não sou professor universitário. não consegui conciliar nada com a literatura. nunca publiquei em grande editora do eixo rio-sp. não resido no rio de janeiro. não me chamo joão ubaldo ribeiro. não escrevo pra faturar. não estou organizando meu ultimo livro. não sou graduado em letras ou jornalismo. não acredito que a poesia seja mais necessária do que o pão ou a cerveja preta. não fiz pedagogia ou artes. não colaboro em nenhum suplemento cultural importante de brasília. não estou presente em movimentos culturais da minha terra. não sou membro da academia brasileira de letras. não sou neomaldito por acaso. não trabalho como assessor cultural de algum aspone. meus pais não foram ligados ao cinema alternativo. não tenho tema preferido, aliás, um não-tema seria o ideal num poema dadaísta. não comecei a fazer teatro aos treze anos. nunca me especializei em literatura hispano-americana. não tenho crônicas publicadas em nenhum jornal de lisboa. não passei a minha primeira infância em campos do jordão. não canto a esperança, aliás, com minha ficção-angústia canto em versos os gritos das ruas, porque ainda restam as ruas para os fracos e oprimidos. não vejo poesia em tudo. não faço parte do grupo de poetas neoconcretistas de são paulo. não me interesso por ficção científica. não sou casado porque sou contra o casamento e acho que mulher deve casar e homem não. na minha estréia não recebi prêmio nenhum. o crítico josé neumanne pinto nunca disse nada importante a meu respeito. não sofri influência do castro alves. não me dedico à pecuária ou a exportação de pedras preciosas. não servi o exército porque tinha pé chato e piolhos no sovaco cor de mortadela de soja. não consto em nenhuma antologia de poetas lusonautas editada na frança. não gosto de arqueologia lunar. nunca tentei compreender a mulher na sua totalidade. não gosto de ostras. não tive limões mas fiz limonadas de lágrimas. não sou flamengo e nem tenho uma nega chamada risoleta. não aprendi alemão para ler filosofia. não sou virgem sou leão-dragão. não me responsabilizo pelo que escrevo. não deixarei impune o legado da minha visão da miséria humana. não sei exatamente o que aconteceu na semana de arte de 22. não sei dirigir e nem sei pescar ou trocar lâmpadas – minha musa-vítima é que troca tudo, até o courinho da torneira (espero que nunca me troque por uma bicicleta ou um abajur lilás). não sei o que vocês querem de mim. não tenho nenhuma verdade, aliás, tenho zilhões de perguntas. não fumo, não tomo coca cola e não sei nadar. não sei se o que tenho realmente me pertence. não escrevi isto que vocês estão lendo.
silas corrêa leite –

O homem que virou cerveja [Livro]

“Eu bebo porque é líquido, se

fosse sólido comeria…”

              (Jânio Quadros)

Emanuel Calixtrato Piazotti Assad era o maior bebedor de cerveja da região da Estância Boêmia de Itararé. Dizia que bebia para ser feliz, para aceitar as coisas ruins da vidinha merreca que levava, e assim tentar conviver em paz com as pessoinhas como elas eram. Bebia muito pra tornar a vida mais interessante. Com ele beber cerveja era sagrado, e uma condição psicossomática naturalmente assumida que invocava um ritual todo próprio que montara de porre direto, seguido, de domingo a domingo. E o fazia no lugar do café-com-leite com broa de milho da manhã, no lugar da água potável pra sapecar a sede corpórea, em vez do suco de framboesa ou limonada com limão-rosa da tarde, antes mesmo da marmitona do almoço frugal, até antes da janta com creme de espargos e pedaços de frango atropelado, ainda mais muito antes de dormir enormemente entupido, e, pior, quando o médico já desacorçoado, receitava bulas de remédios pra rinite ou mordidas de abelhas (pois que ele era pegajoso de açúcares  esplendentes), ele os tomava sempre com cerveja light ou sem álcool. Era impossível. Bebia do fiofó fazer bico.

Encostava o umbigo peleguento no Bar do Tepa, ali na Rua 24 de Outubro, centro velho de Itararé com seus paralelepípedos feito cacau quebrado, e tomava todas e mais algumas, antes de subir trombudo o sentido da casa de meia-água de tabuínhas de pinho no alto da Vila Osório, bem pertico do popularesco e concorrido siriri das putas da cidade, nos idos de antigamente, em que se escrevia farmácia ainda com peagá e se amarrava cachorro com lingüiça de anta obesa.

Sua lenda pessoal, todo mundo sabia. Era simplesmente cair peladão como adão bêbado numa piscina de cerveja, de canudinho e tudo, e só acabasse o forfé inteiro quando se entupisse dela toda. Seu sonho impossível era ser um provador de cerveja numa tal inventada (e encantada?) República Rural-Etílica da Bavária. Sabia piadas sobre cervejas, adorava a loira gelada e, falando sério, para ele tudo era cerveja, até os preços nas biscates que fazia de eletricista, encanador, pedreiro, azulejista, trocador de parafusos ou mesmo em temporadas de zeladoria de clubes em forfés de momo, quando era, claro, tudo uma bolsa de valores na base de cotação-cerveja, tributo etílico. Já pensou?

Prum batente passageiro de final de semana, trocar rosca numa torneira, puxar fiação de 220 wolts, consertar pneu de bicicleta rueira, trocar pneu de jipe chique de perua com mini-saia curtinha que dava pra ver as amídalas por baixo, era baratinho: saía pelo preço de duas cervas apenas. Mais umas lambujas.  Não tinha lá muito fanatismo por uma ou outra marca, de Brahma a Antarctica, mas gostava muito da Skol, e sempre desconfiava das marcas novas, até que, por ocasião de algum forfé maleixo, se empanturrava de uma dessas marcas nascentes e passava a constar no seu rol de apreciador por atacado a noviça e deliciosa cervejinha da hora, até porque, falando sério, a bem da verdade, a primeira fazia tchum, a segunda dúzia mais ou menos essa onomatopéia no gargalo, depois, tudo era a mesma coisa, amarga ou espumosa, quente ou gélida, quadrada que fosse. Diziam, os fofoqueiros oficiais da central de boatos de Itararé, que se ele já tivesse se empanturrado como uma capivara obesa, podiam pedir pruma grávida mijar num litro, gelar direitinho, que ele todo trancham tomava babando e ainda arrotava espuma no beiço curtido. Emanuel era um boêmio famoso da fauna notívaga da Estância Boêmia de Itararé que via a vida de dentro de uma garrafa de cerveja, sob a ótica escapista desse enfoque. Tudo no exterior do ser de si, era uma baita cervejaria cósmica, os seres tanto podiam ser apanhadores dos campos de centeios, quando não fermentos saradinhos, topetudas saúvas bípedes, tonéis de carvalhos com torneirinhas e tudo, polacos barris de chope, curtidouros ambulantes, alambiques com alpargatas, serpentinas com orelhas e ia por aí a prosopopéia pegajenta, viajosa.  Para uns ele era um tremendo pudim de cachaça, para outros era um cidadão-contribuinte bonachão mas viciado nas biritas e nos percursos habituais de trecheiros etílicos que faziam a via sacra e notória da pinguiçaiada da cidade  Alguns piás de rua, fuzarqueiros que só vendo, berebentos e com amarelão, o céu por testemunha, procuradores de sarnas públicas pra atiçarem pedras de dezelos íntimos e banzés vernaculares, assopravam que, se riscassem um palito de fósforo no Emanuel ele virava tocha humana em segundos, tal o teor de combustão nas tripas e que davam explicitamente na epiderme.

Churrasco, era com cerveja espumosa, claro. Sem tirar nem pôr. Ia levar a mulher crente no culto da Assembléia de Deus ali na rua Prudente de Morais, e ficava no barzinho da esquina sapecando algumas, filando petiscos, contando palha, azarando camaradas de vício. Se o filho carecia cuidar de uma cárie rombuda no dente de leite, deixava o piá no dr. Alfredinho Dentista e lá ia no Biribas Blues Bar tomar a saideira que era, a bem da verdade, sempre a penúltima, nunca a derradeira.  Morria algum parente? Ché. Corria dar uma olhada no cadáver pardo, fazia aprumo de dezelo íntimo, depois se pinchava todo de tromba pro Bar do Tunico Bittencourt na esquina do morgue e lá chorava suas pitangas, regado, claro, a uma espumosa preta de colarinho curto para assim até dar sentido simbólico e de metáfora à sofrência. Bebeu tanto, e todos os dias, que até teve crises de delírios. Saquem essa. Quando, mal serviam a cervejinha da hora, e encostava a orelha de dumbo perto do copo, logo, bem entojado, variando purgações, dizia ouvir aplausos de dentro do copo recém servido para a sua sabedoria de bebemorar muito bem e ser fanático por esse néctar dos anjos. Vejam só. Só por Deus. Fazia apostas. Quem bebia mais. O Fernando Milcores desacorçoou. O Jorge Chueri não foi na lábia doce dele. O Tanaka Bailarino, o Badu Contieri tipógrafo, o Bastião Querosene boêmio, o Pedro Ganxuma bóia-fria, o Tilico Boaventura cafetão e nem mesmo o Barão do Caiçara todos juntos, não eram páreos pra ele. Dava gosto vê-lo entornar uma garrafa de casco escuro num golpe só. Ganhava todas. Vinha gente de fora da Estância Boêmia de Itararé tentar levar vantagem com ele, mas ele, tinha feita que, numa empreita etílica dessas, enquanto bebia as três dúzias de uma vez só sem pestanejar, batendo seu próprio recorde já folclórico, ia mijando-se todo, bebendo e vazando, entrada e saída no mesmo duto corpóreo, feito uma esponja etílica.  Até papeava, o lazarento, que, se a cerveja fosse paga com o desconto dos mijos, seria muito mais barato. Pensava em reclamar com o Procon a respeito essa questão de direito de beberrão, boêmio sarado que era, se imaginando herói de uma ONG nesse propósito de defender o líquido mas inexato. Pensava até em escrever pro Presidente Lula esse reclamo gaiato. Os médicos diziam que ele tinha bucho de três pessoas para tanto receptáculo no seu pote de vísceras, mais que o corpo era um só, a cabeça uma só, o pulmão um só, o coração idem, a biles uma só. Onde já se viu? Mas ele era assim, fazer o quê?. Com isso, com o envelope redondo do tempo indo e vindo nas circulares das bebemorações por atacado, o estrupício ganhou íngua em tudo quando era lugar, até nas idéias, diziam alguns sarristas. Tinha caroços em tudo quanto era parte do corpo. Endócrinos avaliavam, e davam com um ou outro nódulo benigno qualquer, encerotada de levedo velho, lúpulo antigo, malte sarado no nodal cíclico. Diziam que tinha a língua dourado de tanto malte, levedo e lúpulo passando por ali. Tinha calos até nas unhas amarelas parecendo chifres amelados do dianho. Os cabelos, acredite se quiser, amarelaram com o tempo. O céu por testemunha. Diziam, os mentirosos e gozadores, os caiporas inventores do inexistente, que ele urinava rótulos amarelos das cervejas apreciadas. Mas aí já é invencionice de gente fofoqueira da central de boatos da cidade. Mentira tem limite, né?. Mistura de italiano com árabe, pai oriundo da Sicília e mãe da roça de tâmaras e hortelanzeiras  do Líbano, ele tinha pique, saúde, jeito e, bem forte, começou ainda mais a encorpar nova estética quando deu-se por beberrão, viciado, com o seu fígado inchado reclamando, pois que o tal fígado começara a fazer mal pras bebidas. Mas nem cirrose tinha, o lazarento e caipora. Mal-e-mal, vez em quando, uma ressaca de vomitar serenatas inteiras em jatos dourados. Mas depois do desperdício, dizia ele, era só engatar numa outra bebedeira e o corpão todo se aprumava num eixo movido a álcool. Era um bípede alambique ambulante. Empresas de cervejas da região sulista toda, quando iam lançar novas marcas caseiras com buquês novos, chamavam o Emanuel pra dar seu gosto de referencial, avaliar o paladar do deguste, no desfrute que filmavam alvissareiros como propaganda de que ele sabia mesmo escolher e era mesmo entendedor da marca e do consumo salutar dela. Até que começou a ficar gordão e amarelo. Enorme como uma anta obesa, até o beiço mole (conservado em cervas) da mandíbula superior vindo pra fora, feito bico somatizado pra captar melhor a espumosa geladinha. Pior foi a cor. Era primeiro de um pardo-biscate, depois um verde maleixo, em seguida marrom-estrume e finalmente a tez amarelou. Quarentão e dourado. De noite, aos tropeções, ganhando a periferia de sua casa, parecia um filhote de cruz-credo, até na estética disforme espelhando a luz da lua mas em cor amelada brilhante.  Teve um filho só, pois se casou com a Mariquinha Lemos, e, quando cobravam porque só tinha um piá de nome Porter (marca de cerveja sulina), ele dizia que era para não gastar zona de fricção a toa, pois que o enorme bucho era o seu laboratório de enzimas componentes das cervas queridas, sua razão de ser e de viver, feito um tobogã de perereca, brincava. A cerveja era o néctar dos deuses, dizia. Dizia-se uma cerveja ambulante, bípede, comedora de carniça, fornicadora e sedentária. Sonhava ser, numa outra vida, se houvesse outro boteco no céu, uma cervejona e tanto. Encorpada e de marca. Cara e famosa. Alemã, de preferência. Quando morresse, depois das cinzas etílicas, claro, queria ser enterrado numa garrafa de cerveja de marca maior, casco escuro, claro. Por ora ia levando a vidinha, mais rolando do que andando, tanto que estava encervejado em tudo, inclusive no psicossomático.  Virou uma garrafa de cerveja ambulante, e até usava de tampinha um boné bem parecido, cabritado. Eram 90 quilos-litros de cerveja embalados no seu corpo-casco pra itinerante percurso orbital, todo santo dia, entre a casa e os bares, entre os afazeres e os bares.O pior de tudo, no entanto, reclama ele, arrotando fermentação numa hérnia epigástrica já esticando o bucho, é quando, saindo de sua humilde casa ali na periférica Vila Osório, garrando os afazeres de biscateiro no centro da cidade, os piás jaguaras de gozadores, logo botam a boca pra fora, feito estrupícios, entre as encardidas cortininhas de florezinhas variadas das janelas das casinhas humildes e periféricas,  e gritam, aloprados berram em alto e bom tom:

-Dééééésce REDONDO!

Efeito Colateral

Nelson Coelho era pegador mesmo. Apesar de bem casado com uma peituda ruiva argentina de olhos de amêndoas e lábios de mel, ele não era de fritar bolinhos, o tranqueira infiel. Chefe do Departamento Pessoal da multinacional Top Orion S/A, catava as minas pedaçudas que dessem mole, no dizer dele, que marcassem bobeira, porque com ele, que era fera, era uma no cravo e uma na ferradura, por assim dizer. A tipinha, inocente ou não, bobeava, e ele, lábia farta, handicap de paqueras, saliva de romântico de ocasião, estrupício, faturava e depois tiau, bença, fui. Nem te ligo. Era uma caipora lazarento de galinha, tá sabendo?

Tinha estilo, claro. Tinha charme, o porqueira. Sabia o favo das circunstancias que coincidiam a seu favor nas estratégias das técnicas de sedução. Roupas de bailes, festins de parabéns, cesta básica, amigo secreto, e, quando se via, tóim, mais uma zinha pro eu acervo oral com riquezas de detalhes. Se cobravam que ele era bem casado, ele fazia tipo solidário, e dizia que a patroinha estava com câncer no seio e já nem dava mais no couro com ele, de insensível e frígida que se restava, tadinha dela.

Sabia muito bem as fraquezas femininas, e, no flanco, com delicadeza e know-how, o estrupício triscava de bandeja. As, ponhamos, seduzidas e encantadas, ou ficavam quietinhas de tudo se restava por isso mesmo depois do desfrute, ou, dando com a língua nos dentes, iam cantar noutra freguesia, demitidas que eram. E elas sempre precisavam do emprego, moralismos à parte.

A maioria das coitadas engoliam a seco o desfrute a que se quedaram, odiavam para sempre o traste, mas ficavam esperando e torcendo para que ele, um dia, pegasse uma doença fatal, engravidasse uma filhinha de papai valente, ou desse de-assim com os burros nágua. Se uma tipa babaquara engravidasse por acidente de percurso em situação ilícita, ele prontamente pagava o aborto, que até forçava que fizesse na marra. Se era virgem sem tirar nem pôr, ele se prevenia que era cabra rodado, macaco velho nas patifarias. Que tipo.

Mas, um dia, e sempre tem um dia nas havências do reino do “era uma vez”, aconteceu o improvável dentro das leis das improbabilidades mágicas. O céu por testemunha. A estagiária de direito que entrou no Setor Contencioso do Jurídico da firma era muito bonita e, a bem dizer, não era flor que se cheire. Nem por força.

Quando Nelson Coelho a viu, ficou boquiaberto, foi um desbunde geral nos seus sentidos e presunções, um desboque nas suas estruturas até psicossomáticas. A mina, loura oxigenada, nome Nanci Estrela, lábios carnudos, pernas na Vera Fisher, olhos tristes de songa-monga, era, digamos, um monumento de pedaçuda de corpo, uma cavala mesmo, só que dura na queda, resistente pra mais de metro, não era próprio dela os deslizes, muito menos se aventurou em gracezas ou entregas, nem por causa de galanteios ou conversas fiadas pra boa bisca dormir. 

Quanto mais ele, o Nelson Coelho, investia nos trâmites da falsa paixão a primeira vista com bregas retóricas de elogios, querendo tirar uma casquinha, ainda mais ela, a Nanci Estrela, punha empecilhos e não se mostrava com eventuais derretimentos por ele. E ainda se vangloriava, claro, na dela: era virgem. Pior, era  crente, tinha namorado de aliança compromissada, era direitinha, não queria saber de má intenção, assédio, muito menos aventuras banais. Foi por aí o desmanche das aproximações como jogo de cena de retorno. Só por Deus. Nelson Coelho ficou pirado.

Não acreditava. Ficou quase louco. Será o impossível? Onde já se viu aquilo, um homão com a experiência toda posta a prova? Tem cabimento? Coração molóide ou pantomina de novo estilo? Vá saber. Queria faturar a mina vinte anos mais nova, era questão de desafio, orgulho, nunca ninguém tinha ousado tanto, em resistir. Estaria perdendo as estribeiras ou ficando feio, vaidoso que era? Benza-Deus.

Até que a pretendida bobeou feio na área. Pisou na maionese. Viajou na batatinha. Brigou com o namorado almofadinha, baixou a guarda da defensiva, quando Nelson Coelho sacou aqueles olhos murchos, tristes, de butuca captou algo no ar, serelepe e todo trancham caiu com uma nova falácia de “ombro amigo; um beijo, um abraço, um aperto de mão”, e, abrindo a perspectiva de um novo diálogo, panca de urutu querendo armar o bote, fazendo-se de puro e inocentinho, “amigos para sempre”, convidou-a para um jantar a luz de velas num restaurante italiano caro e chiquérrimo. Ela não deveria ter concordado. Ele prometeu largar a patroa, pediria divórcio, ainda deu um par de brincos de imitação de platina de presente, o disgramado prometeu também casar direitinho com ela de véu e grinalda, essas birutas cantadas de burrezas pegajentas, que as mulheres, carentes, com cicatrizes, frágeis, às vezes engolem de mão beijada. Foi na fiúza a Nanci Estrela, que  estava como se querendo provar alguma coisa pra si mesma, se vingar, se agredir, punindo-se por causa de alguma fala exagerada do noivinho com conversinha rastaquara fora de propósito que a tinha magoado muito. Tudo pela auto-estima revisitada?.

Jantaram fora o prato fino, louças de cristal. Drinques, lagosta, cedê do Sinatra de presente, juras de amor. Dançaram com o rosto coladinho. Ele, todo galã, emperiquitado, fazendo tipo, pacote pronto, kit básico em último estilo, na linha de frente pro bote cascavel, o calhorda. Ela, meio na defensiva, meio no ofício de entrega, algo jururu, carecida, ainda mais encharcada de vinho do Porto, mal grunhiu um possível sim de forma tácita talvez aceitando a inevitável cantada de “uma  prova de amor” e lá foram pro Motel Maitê, ela prontinha para entregar os píncaros do hormônio atiçado em montada ocasião de risco. Era a píncara sonhadora.

Lá chegando, ele não perdeu tempo, claro, vai que ali perde a imediata acessibilidade do romantismo etílico. Foi indo depressinha que ela estava no ponto, no altar dos sacrifícios. Antes das preliminares pro objetivo final propriamente dito, a pretexto de dar uma desaguada, tirar água do joelho, ele tomou pela primeira vez uma dose especial do milagroso Viagra. Queria uma noite não capricho, dar no couro com estilo, feito falso galã, Burt Lancaster depois da maleita. Não queria fazer feio, nunca se sabe, numa hora daquelas. Iria deixar para sempre a sua marca na gata dura na queda. Valeria a pena. Era assim, o babaquara coisarruim.

Girou nos calcanhares e voltou incontinente pra cama da presa acuada e rendida, ainda etilicamente derrubada em corpórea sensual bem convidativa, já na fase dos beijos e amassos pouco correspondidos, sentiu a barriga refugar uma espécie de vulcão Etna e não quis nem pensar em correr riscos desnecessários. Pediu licencinha benzinho, volto já amor, fique calminha aí querida, e se dirigiu assoviando uma balada do Fábio Júnior pro W.C. Foi um esparramo só. Desandou o intestino carregado. A lasanha? O uísque? O peixe? A salada de frutas asiáticas? Alguma química a partir de algum problema neural ou insegurança freudiana? Nem pensou em nada. A flora intestinal desarranjou-se toda.

Nelson Coelho fez-se chuveirinho, vaidoso como ele só,  e, saindo amarelo, voltou à carga. Tirou a parte de cima da roupa da fêmea, mal estava ali no chove e não molhe que ele era sistemático e preciosista, seios de manga-sapatinho no bico doce de fuzarqueiro, e o desarranjo de novo avisou que tinha havido um desboque generalizado, e ele podia correr o risco de não se segurar no côncavo e convexo da peleja corpo a corpo. Mal-e-mal desidratado, se lavando com raiva, perdeu hora no banheiro, tendo que limpar também todo o hall do ambiente chique e caro, tal o seu ocasional problema de desinteria daquelas bravas, um piriri feroz. Pois foi e voltou várias vezes. Um desboque. Diarréia mesmo, quem diria. Uma noite e madrugada lazarenta de inesquecível.

No bem bom, aqui e ali, quase entradas e bandeiras, o mesmo problema sem parar: ou traçava a mina pedaçuda ou se borrava todo nela. Foi mal. Foi um pandareco. Em várias tentativas sofridas, desacorçoado, passado de sono e desmanche fisiológico, madrugada ganhando o betume das sofrências, lá pelas tantas retornou e a pobre coitadinha, cansada de tanta espera dependente, sem as roupas de cima, só com as peças íntima inferiores, tinha, de bode, desmaiado num sono profundo sem retorno. Deu no que deu. Então o Nelson Coelho concluiu que não agüentava mais,  estava frito e capitulou, rendido as evidências, fraco como uma maria-mole de coco queimado, quase fora de si de tanto sacrifício. Estava até meio tonto e com vômitos, tal a virose que fosse em inusitada síndrome. Dormiu feito uma múmia. Um condenado antes da consumação do crime.

Quando finalmente se viu mal-refeito, o sol ardia a primeira manhã, a tipa, de ressaca braba mas incólume tinha dado no pira que não era bobinha sempre, e ele ali, pálido, esquálido como um coió, precisando tomar chá de cortiça de rolha porque desaguava feito um pote de vísceras. Crime e castigo. Jamais esqueceria a tragédia daquela aventura desastrada quando apostara muito e gastara alta grana inutilmente. Passara em branco. Já pensou?

Segunda-feira, dia de batente, lá estava o Nelson Coelho tomando soro e remédios para a recuperação devida, voltando à rotina, todo frustrado por não ter conseguido seu intento contumaz. Que fora. A bela gata, por ali, indo e vindo emperiquitada, rodeando, cismou, desfilando ainda mais seu charme, a sua mais nova implicância de futura improbabilidade, porque, de algum modo se safara, não cedera, resistira sim.

Estava arrependida e nunca mais agiria daquele modo, censurando-se pelo quase pecado que afinal não se consumou. Também pudera. Ele, o Nelson Coelho, coitado, contando-me depauperado todas essas acontecências com riquezas de detalhes, mal se cabendo em si de vergonha, ainda se sente uma canalha. E ainda comenta que, quando ocasionalmente encontra a Nanci de pertinho entre a área contábil e o almoxarifado, olha-a nos olhos, e pensa, ao admirá-la loucamente:

-Tesão!

Mas ele não sabe, o caipora, que ela, mal se contendo na fé e na fidelidade, ainda o desacredita e, de forma concomitantemente ao vê-lo, disfarçando interiormente o descrédito, toda segura de si ao mesmo jocosa refutando pensa:

-Cagão!

-0-

Silas Corrêa Leite – Conto da Série “Beer-Man, O Homem Que Virou Cerveja”

E-mail: poesilas@terra.com.br

Site pessoal: www.itarare.com.br/silas.htm

E-book de sucesso O RINOCERONTE DE CLARICE no site

www.hotbook.com.br/int01scl.htm

Campo de trigo com corvos [Livro]

PREFÁCIO

ALGUNS SÍMBOLOS DA PERPLEXIDADE

“O vôo rasante dos corvos

Debicando/Não as espigas

Maduras/Mas os olhos …”

Jorge Sousa Braga, in “O Lírio que há no Delírio”

O título, sumamente concreto e substantivo, impele ostensivamente para zonas sensoriais e pictóricas. No entanto, “Campo de Trigo com Corvos” não é mera reprodução do quadro de Van Gogh onde o trigo, amarelo, eivado das chamas loucas do pintor, escorraça de seu seio o bando negro dos corvos. Aqui, no livro, muito para além dos afugentados, corvos há que permanecem pairantes ou, mais ainda, baixando ao rés do solo jogam-se contra as pessoas provocando a clivagem (ou a carnagem). E esta fórmula aproxima os textos de uma realidade mais humana, ainda que desumana em função de traumatismos de que se tece a evolução vital e biológica.

Mas, na arte de contar estórias, e é um pouco do que se trata aqui, o texto recorre globalmente a técnicas específicas da pintura. Designadamente, dos seguintes modos:

Os fatos sucedem-se em tom linear, contíguos ou adjacentes, em direção a um desfecho, previsível ou não, podendo-nos apropriar neste caso da imagem do rio que decorre e atravessa a paisagem rumo à foz.

A disposição da narrativa procede à colocação ou disposição de cenas paralelas, quadros que se encostam na vertical, ou na horizontal, às vezes na diagonal. Lembrando um pouco os vitrais medievais que ainda hoje se encontram nas catedrais.

Postado na posição do personagem, o narrador reavém e sintetiza em frases-cristais largas faixas de vida transcorrida. São parágrafos breves, como riscos impressionistas e apressados, que intentam ou ensaiam remover um vulto de episódios para um mínimo centro, na vã tentativa de os aprisionar. De tudo dizer, sem ceder ao uso da gordura das palavras, muitas palavras, palavras a mais, o “contar palha” da gíria.

Por outro lado, mais do que abordagens textuais que imitam ou pretendem irritar técnicas fílmicas ou de vídeo, nota-se um apropriar de materiais atinentes ao teatro.

Desde logo, na encenação criteriosa e fiel de palcos que suportam os personagens, a reconstrução de sítios, locais, ambientes ou atmosferas. Em que tem papel fenomenal o fluxo da enumeração. Neste exemplo, utilizaremos o conto nodal, que dá título ao livro, “Campo de Trigo com Corvos” para promover a tipificação:

“Contratou peões de fora, tipos mal encarados de outras plagas, outras praças, gaúchos, catarinas, ˝barrigas-verdes˝”. Observemos como se delineiam outras estilísticas da arte de talma:

O imprevisto é um dos recursos que pode fazer balançar o espectador na cadeira. Ele é aqui arremessado, quer surgindo de-vereda, o designado “causo”, bem assim o pandareco, quer atribuindo um rumo à história totalmente inverso, ou ao menos diverso da lógica que as teias já desarmadas anunciavam.

O equívoco é, como se sabe, o banquete de muitas peças de teatro. De algumas em exclusivo. Ele provoca o espectador, obriga-o à concentração e à reflexão (e ao riso ou sorriso), mantém vivo o desenrolar do evento e o esforço dos atores. Aqui também ele atua, burilando surpresa nos personagens, dando lastros de ironia às vidas encenadas, apanhando na contra-mão o leitor. Quiçá, o próprio autor terá aberto olhos quando da elaboração dos textos.

Alguns títulos, algumas frases, preparam para ocorrências posteriores do conto. É uma espécie de levantar do véu, destapar de roupas femininas, jogo de sedução e permeio. Que muitas vezes pode desaguar num dos recursos anteriores, anulando ou aparelhando os efeitos: o imprevisto.

Mas, o mais robusto de todos os recursos é o golpe-de-teatro. Repare-se que a própria palavra de que vimos falando integra a nova palavra, esta, aliada a golpe. Quando tudo se encaminhava no rumo certo, quando a rotina ou a monotonia se estavam solidificando, eis que de supetão tudo se desmorona, tudo se transtorna, ficamos submersos nas estrias que estouraram sobre nossas cabeças, fica tudo de pernas ao ar, a mesa, a casa, o livro, o corpo, a mente.

Apesar de usado e abusado, gasto e regasto, o conto produz-se hoje em doses avulsas. A despeito de sua condenação, final da história e seus componentes-trave: narração, tempo e espaço, decretados pelo noveau-roman.

Não basta hoje dispor magnanimamente da arte de contar. Não basta, como a Silas Corrêa Leite, ser um domador de estórias. É condição, ainda e nomeadamente, inventar histórias, seu entrechocar, prover à invenção de uma “história nova”. Isso aconteceu, muitas vezes, neste livro. Mas vejamos algumas das várias fórmulas de história com que nos deparamos:

Existe a história que é canto, beco e síntese em “Boêmio”.

Existe a história que se traduz inteira e integral em “O Enterro”.

Existe a que se senta na paragem, recusa avançar de momento e aguarda o porvir em “Quando a Tragédia Bate em sua Porta”.

Existe a história que se metamorfoseia em lenda, veste-se mágica, irreal, em “O Inventor”.

Existe a história contida, espelho de deserto dos tártaros, com tempestade iminente mas que não desaba em “Campo de Trigo com Corvos”.

Mas todo livro é ou pretende ser uma obra literária. E é só isso que importa. Obtê-lo, consegui-lo, é todo o mérito e valor acrescentado possível. Também aqui se obteve largamente esse desiderato. Observemos alguns dos meios. Ou fins.

Deitando mão de uma linguagem que, afora o popular, o linguajar, a gíria, agarra os elementos específicos de dialetos, sintaxe indígena, eivando a escrita de vocábulos originados do tupi. Exercitando uma experiência genialmente rasgada noutros países de língua de expressão portuguesa por Mia Couto e Luandino.

Dando o braço à metáfora, à imagem em novos moldes, revitalizando os textos. E desse modo obtendo o viço, a chispa, o engaste de muitas frases. Alongando a metáfora, expandindo-a, cingindo-a a personagens inteiros ou à globalidade do conto. Metáfora que se transforma em alegoria. Exemplo seguro de tudo que fica dito são os Corvos de “Campo de Trigo” e o Muro, em “Anistia”.

Lançando as palavras umas contra as outras, quando contíguas, provocando choque, conflito, traumatismo, mas também colo, enlace, anel.

E neste particular merece realce a intensa e não pretensa construção de novos vocábulos. Fruto de tentativas ou abordagens díspares.

Usando a colagem, a composição, errônea em aparência mas sempre imprevista, como no caso de “esposa-vítima”, “vento-coisa”, “nuvem-lesma” ou “lebre-dor”.

Recorrendo à síncope, como se verifica em “marra” e “garra”.

Provocando a junção, de que poderemos enunciar “enfebre”, “nágua” e “cinzazul”.

Adstringindo a preposição, prefixada, em “de-vereda”, “de-assim” e “de-primeiro”.

Neste campo, de trigo literário, em que muitas letras são corvos, entendo que o mais subtil e profundo recurso resulta do germinar de vocábulos novos, que estimulam os acordes da sintaxe, da fonologia e da morfologia. Realizando cambiâncias, muito pouco vistas e nada pouco inesperadas. Ousando obter o substantivo a partir do verbo, do adjetivo, ou mesmo do próprio substantivo. Obtendo ligas que só ao alquimista são permitidas. Vejamos.

Do inúmero número de vocábulos em que se verifica um processo de alteração da categoria sintática, ou manutenção sintática por força de novo vocábulo, quer por ação da base quer do derivado, topamos estas nominalizações deverbais: “acontecência”, “havência”, “pertencimento”, “andação” ou “conhecença”.

Como apodo de nominalização denominal, poder-se-ia citar “mentirança” e “medaço”.

Para não jazer nas plagas do vazio, eis também uma adjectivalização denominal: “encranqueira”.

Recuando: perante o impasse da estória, notória se torna a premência da exploração de técnicas e moldes e dados inovadores. Porque não basta à ficção reproduzir a realidade ou ser espelho do real. Isso já se fez ou é horta de outras artes. Da perícia autoral depende a superação do real. Mais: a sua subversão.

E é o que acontece substantivamente em “Campo de Trigo”. Podemos apontar o irreal em “O Inventor”; o surreal em “Anistia”; a subversão do real (pelas palavras) em “Justiça”. Estas e outras estórias é que provocam o avanço. Deixando as restantes coladas, como pinto recém-nascido a casca-de-ovo, a correntes literárias já desgastadas, ainda que recentes.

E já que entramos na corrente, deveremos referir a mais ousada ousadia presente neste livro. Algo que apelidaríamos de transrealismo. Obter do texto a superação do real, a sua mistificação, submeter e soterrar normas, o erigir de um outro real. Isso acontece aqui e ali, mas de forma exemplar no conto mais de todos escatológico: “O Osso” (também em “Congonha”). De que retiramos três análises resumíticas: a mulher que se dá ao pai e depois ao filho, sendo carne para o primeiro e osso para o segundo; o homem que, elo em Kafka, devém canino, o filho-cão; a habituação a baixas desumanidades que impede um ser humano de reverter após uma vivência animalesca.

Falávamos de artes plásticas. De artes cênicas. De linguística. E, sobretudo, de arte literária. E corrente. Literária, claro, mas não só. Tudo muito apreciado. Mas então, e a vida? Porque é o sangue dela que muitos pretendem, ou preferem, ver escorrer das letras dos livros. Diria:

Existe, como metáfora da terra, e dela, a vida, um extenso campo de trigo. E pequenos pontos negros no meio do trigo, os corvos. Este é o palco, é aqui que tudo decorre. Com o sol por testemunha ou sob o céu noturno. Os pequenos pontos negros por vezes exaltam-se. Rebelam-se. Ficam loucos. Pode dar na destruição de todo o enorme campo. De trigo. E é assim que a vida se eleva (mesmo quando derrubada). Porque ela é em simultâneo

Luz e escuro

Branco e negro

Gozo e dor

Água e fogo

Campo de trigo e corvos.     

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Antero Barbosa, Literato Premiado, Portugal

Livro:

Campo de Trigo Com Corvos

Editora Design, Santa Catarina

Autor: Silas Correa Leite E-mail; poesilas@.terra.com.br

Site: www.itarare.com.br/silas.htm

Entulhos sociais do vampiro de Curitiba – Dalton Trevisan

O vampiro vai fazer 90 anos, mas a Transilvânia de seu sangue cênico é Curitiba. Considerado por Sérgio Sant’Anna o nosso maior escritor vivo, Dalton Trevisan se esconde em contos e assim, na literatura insurgidora, revela a máscara da espécie humana; brasileiríssimos em contundências, estados invasivos e a canalhice mórbida dos trópicos, enraizando na nossa cultura de placebos.

Não quer falar, nunca quis. Cala pelos cotovelos. Leiam os nanocontículos dele. Está tudo ali. Curitiba pinga, regurgita, agoniza mas não morre. Dalton é isso, um Borges do Paraná com uns contos lagartixas pescando moscas mortas, lares armadilhas, bares de esgotos góticos, entre sombras e escuridões. Dalton, 90 anos, rumo aos cem, que ninguém é de ferro. As escondidezas fazem bem para pose, para a lenda, para o mito.

Não dá entrevista. Mas sua alma-chope preto está nas entre/vistas de suas cantárias em prosa ligeirinha. Dalton pega pesado em rápidas pinceladas. Arisco. Há riscos. Entulhos soçobram, e ele escreve e se esconde no não-lugar do não-ser: não está nem aí, nem aqui, talvez nem nunca ali mesmo nos livros pockets como porta-lapsos.

Escuta as falas alhures dos outros, bêbados ou dopados de alguma forma (cafeína, rabo-de-galo, comital, crack, álcool, cocaína, chá de losna, ego, crendice, fé, traição, impotência, efeitos colaterais do viagra),e depois bota no papel os entulhos dos subcretinos, seres/reses, como feridas vencidas. O vampiro de Curitiba corta o próprio pulso com estiletes de prosa. Não fala, mas escrevendo e se escondendo, terrifica a rotina cotidiana da masturbação do ódio customizado da elite pangaré… Curitiba, sai de baixo! Tira véus, acende a lanterna dos afogados, polaquinhas, morenas, pés vermelhos, sandices e desvairados inutensílios. Dalton dá o tom. Passa o rodo no rímel, no laquê, no batom das etiquetas. Assedia as pá-lavras. Bota micos no incêndio. Purga. Fermenta. Mora sozinho com seus fantasmas, seu estado de ausência no crível, no bizarro, no bisonho. Cata entulhos e palavreia a gosto de nanonarrativas que sacolejam, expõem as vísceras de meios, famílias, sociedade, lumes neutros, larvas turvas, terra pústula.

Dialoga com Helena Kolody, Nelson Rodrigues, Leon Eliachar, Oswaldo França Junior, Plinio Marcos, Bukovski, Rubem Fonseca, Antonio Abujamra, Millôr Fernandes, Sade. Revisita Leminski e repagina-o aqui e ali no que destila, tanto o desafeto, o desaforo, o devaneio de escariote arrependido, o sexismo de águas furtadas, mixórdias e marotices no fluxo narrativo. Vai picoteando imagens, palavras, parágrafos, orações, feito uma Salomé tupiniquim servindo a cabeça de incautos, cenas rápidas, panos rápidos, sempre o fuzilo de um vapt-vupt tresloucado em linhas próprias, sintaxe pessoal pareada.

Contos cartuns. Privadas púbicas, restos, réstias. Restos canalhas de nós mesmos. Moral da pequena burguesia fede a Freud e a pau de sebo.

E Dalton existe, resiste, e escreve o curtume.

Andei, muito tempo atrás, recebendo por via indiretas de amigos de Curitiba (como o saudoso Jamil Snege), alguns livretos dele. Depois perdi o fio da meada.

Feliz aniversário, Vampiro. Noventa e não chove. Noventa mas não inventa… Dá o tom.