Coió

Texto: |

“…eu vim te trazer, Menino
Não ouro, incenso ou mirra
Mas a solidão, minha Pátria”
(Silas Corrêa Leite)

Olhou-se: um trapo! — Os frágeis cabelos ruivos, ralos. Os fundos olhos cinzas, tristes. A fronte com rugas cavando um jeito de infinda melancolia e frustração, intimamente dor imedida. A boca murcha, disforme e torta, mostrando os poucos dentes amarelos e podres. De dar dó. O espelho-Vida era a cruel revelação dele ali. Tinha comido um naco de mamão-papaia achado no lixão fétido e cheio de beronhas de um restaurante vegetariano. As roupas sujas, cerzidas, cheirando mal, toscas, em frangalhos. Camisa gasta, calça puída, mochila carcomida pelos descaminhos inúteis por onde vagara feito um “trecheiro” como diziam os sociólogos puristas.

Nos pés inchados e com veias quase saltando, um par de tênis surrado de andanças (e erranças), com ceroto, pelos percalços de um ir e vir transido, a esmo. Olhou-se outra vez no espelho: resto daquilo que ainda tentam chamar de espécie humana, de gente.

Foi quando percebeu. Por entre as frestas coloridas (com costumes natalinos) das vitrines da loja de brinquedos, sua filha Larissa atendia docilmente a uma senhora obesa perto do balcão central. Era noite de Natal. Àquela época do ano, como se comandado por um instinto natural, ou pelas relembranças mal-guardadas no fundo pétreo do coração partido, vinha pelos cantos; ermos e sombras da cidade, até ver a bendita filha amada.

Era sabê-la e ir-se embora sem mais nem menos. Como uma espécie de ritual. Não se mostrava, não aparecia e nem se apresentava; não dava curso de identificação, não fazia absolutamente nada. Olhava apenas. Mas naquele olhar embevecido, alma derretida punha todo o amor que possuía, como se saísse de um inferno íntimo ou descansasse o peso da cruz que era seu andarilhar feito coisa. Deixou a casa um dia que brigou de novo com a mulher Dagmar, e esta novamente destratou-o, humilhando, pisando, usando-se de palavrões chulos, chamando entre tantos impropérios usuais na cidade de molambo “topeira”, desgraçado e tudo mais. Só porque era um simples torneiro-mecânico aprendiz, recém-casados que estavam e ele ganhava pouco. Não fizera carreira na vida ainda. Foi uma loucura. Larissa era por vir, pois casaram já com a criança encomendada.

Desacorçoou.

Brigas, traumas, tristezas, humilhações; vocabulário infame para agredir, pisar, bater no ego, o da mulher amada, tirada de um antigo bordel de Itararé, que fora visitar com um tio que tinha serraria. Depois de ser muito bem inaugurado na peleja sexual que o fisiológico e sensorial até exige, de presto sentiu-se rendido às evidências: estava apaixonado. Amor à primeira vista?

No namoro-paixão, o casamento era uma gostosa expectativa de esperança de conciliação. Seriam felizes juntos, pensara. Depois, malemal alguns meses de convívio, um inferno o lar. Sogra, cunhados, todo mundo se desfazendo dele, que mal sabia escrever o nome numas garatujas de rabiscos: Saulo de Tarso.

Casos daqui, acontecências ruins dali; tempo cuorando a desfeita. Deu de beber. No Bar do Miro Vaca, ainda em Itararé, tomava todas e mais algumas. De primeiro rabo-de-galo, para chegar em casa passado e suportar a sofrência da patroa cusarruim. Piorou a emenda, o rebite alcoólico. Agora, além de maleixo, molóide, “tranqueira”, era um imprestável pinguço que mal dava no couro. Palavra da mulher que adorava .

Um dia perdeu as estribeiras. Arrebentou uma foz no íntimo transido. Não soube conter-se na prudência que o entrave exigia. Simplesmente anoiteceu e não amanheceu. Botou uma mochila velha do Tiro de Guerra emprestada do Bastião Querosene em cima dos ombros, acertou as contas na oficina de serralharia artística e deu de vagar ao léu. Correr o estado de São Paulo de ponta a ponta. Depois outras regiões do Brasil. De carona, de favor, escondido. Subia em caminhões sem ninguém perceber, embaixo de vagões de trens de carga. Ou de favor, morando em becos, cortiços; dormindo em pontes, currais, cantões de estradas. Comendo restos. Vegetando feito um traste. Nem ruim do juízo, nem totalmente lúcido; procurando achar o favo trivial de sua existência de inútil.

Foi, enfim, virando um mendigo. E quando deu-se por si, era o que ali estava, no espelhado cristalino da loja rica: um velhote. Um ancião arigó porqueira, numa época em que as famílias se juntavam e comemoravam o nascimento de Jesuscristinho… Ele, coitado, malemal tinha um presépio-breu no peito em lanhos, sem polimentos íntimos.

Quase meio século de vida agora. Magro, doente, esquálido, acabado em todos os sentidos.

Mas a filha Larissa estava linda, Deus do céu!

No ir e vir de suas andanças feito um nômade, volta e meia apeava do orgulho-cela, queimava a dor do retorno ao eio, e ia escondido sapear a filha amada. No bercinho azul (viu de longe); no descalço da rua 24 de Outubro (viu de supetão); na escolinha do grupo escolar Tomé Teixeira (viu por detrás de um cidral); no ginásio viu-a chupando dolé de groselha preta no recreio(sondou em cima de uma mangueira seca); no colegial viu, quando ainda pedia esmola para um passante atencioso e cristão de época de Natal. E foi sempre de-assim por diante. Até aquela noite de Natal em que a loja onde ela trabalhava fazia plantão; sua filhazinha iria ganhar bem com as comissões e horas extras? Pinheirinhos de araucárias enfeitavam o pavão da noite radiante de matizes e iluminuras terreais, fantásticas. Itararé estava como sempre: pitoresca, bucólica, cativadora.

Agora Larissa ali, já moça e trabalhadora, bem feita na vida.

Pensou em entrar e pedir um copo de leite. Ficou com medo. Pensou em só dizer que a amava muito. Ficou com pesado lastro de emotividade maior do que poderia conter no peito doente. Represou o ímpeto e a emoção. Lidou com seus sentimentos. Quedou-se.

Nesse ínterim, no entanto, surpreso foi que percebeu que a tal loja estava para ser assaltada. Onde já se viu aquilo de fora de propósito? Viu um “trombadão” com arma pesada dirigindo-se ao caixa, perto de onde estava Larissa bem entretida em servir a uma freguesa. O sangue falou alto. A mão murcha tremulou, o cérebro doeu feio o peso de tamanho Ver. Será o impossível?

Feito um espeloteado, fora de si como um pai carinhoso, largou a mochila malcheirosa e entrou no centro do acontecido, gritando igual a um louco, assustando as pessoas, alertando rueiros e alarmando para o geral das adjacências: praça pública e imediações emperiquitadas por causa da data maior da cristandade.

Tiros, gritaria, vidros estourados — o espelho! — e Saulo sentiu-se ferido.

O vigilante da firma que estava rendido num canto por outro bandido, reagiu violentamente e matou um dos ladrões. Um outro meliante tentou fugir mas foi pego e surrado pelos transeuntes que deram-se a ver o barulho. O menor que restou, ao tentar evadir-se foi atropelado por um carro forte que vinha da Rua São Pedro, cheia de luzes que pareciam etéreas.

Saulo de Tarso pregado no chão.

Vigias, gerentes, supervisores setoriais aportaram. Foi um pandareco do diabo. Um qüiproquó disgramado. Um “forfé” por atacado, o guaiú todo.

Larissa veio solícita, anjo, meiga, doce, com um copo de água na mão corajosa e amparo-luz de agradecimento ao velhinho.

Viu-a, de bem pertinho, com lágrimas furtivas nos olhos murchos. Amor e dor. Ela tomou-lhe a cabeça de pobre e acabado, aconchegando-o numa almofada-brinde, e serviu com angelical candura, próprio de dela.

Ele, ferido de morte para sempre, ainda encontrou resíduo de ternura para balbuciar, entre o delírio pelo ardor fatal da ida e embora e ternura pelo inusitado reencontro, palavras lentas, salpicadas no triste confeitar do que se lhe vinham com dificuldades no sentir incomum:

— S-o-u s-e-u p-a-i…

Mal murmurou quase e apenas isso com a boca torta — ou só sonhou essa íntima intenção maleixa? — nem se fez entender direito ou pareceu que ao menos falou e morreu. Finou.

A ambulância, o guarda da Força Pública, o Inspetor de Quarteirões, o Gerente, o Diretor de Departamentos e Larissa entre funcionários comuns e curiosos. Copo de vidro quebrado no chão. Cheiro de panetone quente, espoucar de champanhes ao longo. Estilhaços ao deus-dará. Cortinas fechadas nos íntimos transidos. Silêncio quase prece.

Larissa que chegou em casa e contou aos familiares o havido, com riqueza de detalhes. E que um mendigo feito louco tinha evitado o assalto, tinha evitado o pior. E estranhamente murmurara alguma coisa , alguma palavra como “Pai”, como se não estivesse entendido bem; como se fosse seu desaparecido genitor. Mas não tinha qualquer documento ou papel identificador, o coitado. Tinha sido enterrado como indigente, num sete palmos raso do Cemitério das Andorinhas de Itararé.

A mãe, velha e cascavel, já no quarto concubinato-entrave, ainda câncer de ser, destravou-se numa falácia própria dela, destilando o vinho-verbo:

— Deve de ser um porqueira qualquer, imagine só. Um “caipora” lazarento e mais nada. Seu pai nem teria coragem para tanto. Um bocó disgramado querendo aparecer para levar vantagem. Nessa época do Natal aparece cada um, acontece cada coisa que só vendo. Seu pai, aquele traste, de tão babaquara que era, de tão coió, já deve ter morrido, o desgraçado…

E ainda acrescentou de toleima, fazendo beiço de tromba e se mostrando quizilenta, casca-grossa, sem-seca:

— Pare de chorar feito uma criancinha tola. E jogue fora essa foto três-por-quatro de quando ele ind’era moço. Largue mão de ficar gastando todo salário pondo anúncios em jornais e revistas do Brasil, tentando encontrá-lo. Onde já se viu isso? Não fique perdendo tempo e jogando grana fora. Um peste como ele, um coió, um irresponsável e fujão, não merece uma filha assim como você.

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Silas Correa Leite [Poeta, Escritor, Jornalista Comunitário e Educador Brasileiro]

Silas Correa Leite. Educador, Jornalista Comunitário e Conselheiro em Direitos Humanos, começou a escrever aos 16 anos no jornal “O Guarani” de Itararé-SP.

Fez Direito e Geografia, é Especialista em Educação (Mackenzie), com extensão universitária em Literatura na Comunicação (ECA).

Autor entre outros de “Porta-Lapsos”, Poemas, Editora A

Poema Cristo Crucificado

Tomo tu dolor, Cristo crucificado
Y quiero bajarte de ese horror
Quiero arrancar el clavo en tus pies clavado
Para darte el conforte de mi simple amor
Siento dolor, Jesús, al mirar tu estado
Y quiero salvarte de ese terror
Liberar tus brazos abiertos del madero armado
Cantarte una cantiga, darte un
cobertor.

Siento tu dolor, mi Dios, allí clavado
Que vier

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